maio 27, 2013 - Poligrafia    1 Comment

País sem jeito!

Tempos difíceis os que vivemos, onde não podemos nem falar nem calar com segurança. (Luis Vives, 1534) 

Os que sabem dar a verdade à sua pátria não a adulam, não a iludem, não lhe dizem que é grande, porque tomou Calicute; dizem-lhe que é pequena porque não tem escolas. Gritam-lhe sem cessar a verdade rude e brutal. Gritam-lhe: Tu és pobre, trabalha! Tu és ignorante, estuda! (Eça de Queirós)

 

Os cientistas políticos dizem, teorizando, que temos três poderes: executivo, legislativo e judiciário. Que eles são harmônicos e independentes, como pensaram Kant e Montesquieu… O princípio da divisão dos poderes, entretanto, tanto na teoria de Kant quanto na de Montesquieu, é inútil para se compreender o funcionamento prático do nosso sistema de governo, não passando de mera ficção política; um faz de conta. Não há aqui senão dois poderes: executivo-legislativo, propriamente o governo, estranho híbrido engendrado por nossa malandram republicana, e o judiciário, cuja cúpula é nomeada pelo outro. Somos, verdade seja dita, uma república imperfeita, que vive estagnada no seu interminável mau começo… Obra inacabada a espera do meio e do fim.

Não é propriamente a coalizão característica das repúblicas parlamentarista, é a cooptação do legislativo pelo executivo, em troca da liberação de emendas parlamentares e de nomeações para os escalões da burocracia estatal. O judiciário, não obstante sua cúpula ser nomeada pelo executivo-legislativo, às vezes tenta alçar o voo da independência, mas sempre termina de asas aparadas, por sua própria tesoura…

Uma comunicação de 13/05/2013 dava conta que havia, ao largo do porto de Paranaguá, 94 navios esperando oportunidade de atracação, para descarga e carga de mercadorias. Muitos de âncora ao mar desde 06/03/2013… A China cancelou uma compra de 2 milhões de toneladas de nossa soja em razão de atrasos nos embarques portuários, que estão entre os piores do mundo. Num ranking com 144 países, feito pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 135ª posição no item qualidade de portos. Portos mais caros e mais ineficientes do que os de países concorrentes. Operar no porto de Suape, em Pernambuco, custa cinco vezes mais do que no Cartagena, na Colômbia, é o juízo dos especialistas.

Isto bastaria para que a Medida Provisória dos Portos merecesse o consenso da câmara dos deputados, para tirar o Brasil dessa situação absurdamente humilhante, que o torna incapaz de competir no comércio internacional. Não foi assim… Assistimos a um deprimente espetáculo de agressões mútuas, com denúncias gravíssimas, entre deputados da própria base de sustentação governamental, a ponto de o presidente ter que encerrar a seção, sem concluir a votação, para poupar a nação de outros vexames… No outro dia, quando se esperava que a votação fosse concluída, os deputados se reuniram para homenagear o reggae! A presidente acionou o mecanismo de pressão que tem em mãos, ameaçou, exigiu e, enfim, a MP foi aprovada, depois outras agressões mútuas, já na última hora. Ao senado, que há muito deixou de ser a casa da revisão legislativa, da prudência política, não sobrou tempo senão para homologar o que a outra casa havia produzido. Eis o retrato, de corpo inteiro, do nosso executivo-legislativo.

O presidente do outro poder, trocando a toga judicial pela de cientista político, ousou dizer a acadêmicos uma verdade: “o legislativo é ineficiente e inteiramente dominado pelo executivo”, porque temos “partidos políticos de mentirinha”. Por dizê-la, logo recebeu a contradita de senadores e deputados, que se sentiram ofendidos… Mas, como de prática, a tesoura do próprio STF, que referi atrás, cortou-lhe a asa em pleno voo: “não houve a intenção de criticar ou emitir juízo de valor a respeito da atuação do Legislativo e de seus atuais integrantes”, disse a nota da assessoria de imprensa do STF. Bem, juiz, da primeira à última instância, é especialista em interpretar… Tira da lei, muita vez, conclusão que o espírito dela rejeita… Faça a nação, das frases do ministro, a interpretação teleológica que lhe convier… Afinal, o utilitarismo tem sido seu código de conduta.

O Estadão (de 20/5) publicou, na página Política, a matéria Supremo paga voos para mulheres de ministros e viagens no período de férias. O balanço dessas despesas, segundo os jornalistas que a subscrevem, dá que em 4 anos R$ 2,2 milhões foram gastos com passagens de viagens internacionais, dos quais R$ 608 mil com passagens para esposas dos ministros. Acho que excelentíssimos viajantes deram, hermeneutas que são, ao extravagante gasto, uma interpretação conforme a constituição matrimonial…

Ah! Já ia me esquecendo… Fui cumprir um mandado de Hilca na Rua Alceu Amoroso Lima, tendo que trafegar pela Tancredo Neves… Uma tortura! Estacionei o carro e, ao sair dele, a senhora que administra o estacionamento rotativo, da Transalvador, aproximou-se e me disse: “É seis reais o sinhor qué a cartela ou mi dá pur fora, ai pode ficar o tempo qui quisé.” A senhora é uma ótima negociante, elogiei-a… Fatura muito, por fora? “Da pra tirá um dinerinho”, respondeu-me. Bem, eu prefiro comprar a cartela…

Brasil, gigante que não se levanta do berço esplêndido… De antinomias mil! República presidencial maluca, que concentra na mão do executivo, cujo presidente é um monarca absoluto por oito anos, poderes que nenhuma nação civilizada concentraria. País sem jeito!

Fernando Guedes
22/5/2013
maio 24, 2013 - Poligrafia    No Comments

Se for para servir, sejam bem-vindos!

 
O que mudou é a definição do que constitui um ”bom médico”. (Wiliam Bynum)
 
A medicina não é uma ciência, mas uma profissão que compreende tanto o aprendizado da ciência médica como atributos pessoais, humanísticos e profissionais. (J. Claude Bennett)

 Conheça a fundo a biologia normal e patológica – será um grande médico; apure ao extremo a utilização desses conhecimentos junto ao doente, acertando-lhes com a doença, mitigando-lhe as dores, dando-lhe a cura – será um grande clínico. (Miguel Couto)

 

O governo, isto é: o executivo-legislativo, que sempre faz tarde e mal as coisas, está disposto a importar profissionais para suprir a ausência de médicos em 397 municípios… Não tardou a reação das chamadas entidades médicas, de defesa da classe, que se declaram contrárias ao exercício da medicina por esses profissionais.

A alegação, absurda, é que tais médicos não têm competência, para cuidar da saúde dos brasileiros. É o ufanismo de sempre: nossos bosques têm mais flores, nossas vidas mais amores; nosso céu mais estrelas, nossos médicos mais competência e por aí vai…

Quem escreve estas linhas, caro leitor, é um médico com 35 anos de profissão, ainda dando plantão na emergência do hospital geral do Estado, aos sábados, o que ostento como um título, que outorguei a mim mesmo. Sei, portanto, ex cathedra, o que sofrem os pacientes que necessitam de serviço público! Não cabem, nesta página, as histórias que guardo na memória da lembrança…

Tenho visto, lá no hospital em que trabalho, o passar das turmas de acadêmicos, do quinto e sexto anos, para estágio em emergência. Nunca vi um professor acompanhando-os. São precariamente orientados pelos plantonistas, que ali estão para atender e não para ensinar. O médico não admite que outro profissional exerça a medicina, argüindo o exercício ilegal dela (não é a razão da tão propalada lei do ato médico?). Mas fecham-se os olhos, numa cumplicidade utilitária, ao exercício ilegal do magistério.

Evidente que a importação de médico, para além de ser uma vergonha, é uma medida precária, que não atinge a causa do problema. Será a dipirona para a febre que infecção crônica da incompetência governamental, que exaure o organismo estatal há décadas sem fim… Se houvesse honestidade de propósitos, se houvesse vontade terapêutica para debelar esse mal crônico, governo, entidades médicas e médicos, principalmente estes, lutariam pela terapêutica eficaz: a medicatura pública e a medicatura rural.

Coisa estranha? Explico, o exercício da medicina se daria de dois modos: a) privado, como uma profissão liberal, da forma quer o médico entendesse de praticá-la: em consultório, clínica ou hospital.  b) pública, através da medicatura pública, complementada com a medicatura rural. A exemplo da magistratura, o médico prestaria concurso pra integrar a medicatura e trabalhar em regime de tempo integral e dedicação exclusiva, em troca de salário digno e plano de carreira (como juízes, promotores etc.).

O sistema seria complementado com a medicatura rural, assim definido: o médico formado por Universidade pública seria obrigado a trabalhar na medicatura rural, por 2 anos, onde o Estado necessitar dos seus serviços (não é assim com o serviço militar?), em troca do piso salarial a medicatura pública. Vencido o período, estaria livre para ingressar na atividade privada ou fazer para a medicatura pública.

Evidente que não verei esse sistema implantado, porque, se não bastasse a indiferença que a ele devota o governo, não desperta a simpatia da classe médica, afinal mais conveniente o “esquema”, isto é: valorizar o salário trabalhando menos.

Eis o panorama: o vestibular (ou essa outra coisa que anda envolvida em fraudes) ou quota, depois as disciplinas básicas; já a especialização precoce, a chopada da turma, que aqui e ali termina em coma alcoólico; a opera bufa da formatura (apitos, gaitas, buzinas… ninguém sabe mais dançar valsa!); o registro no CRM (a autorização para exercer a medicina)… Como o curso de seis anos pouco ou nada ensina: a residência médica, para aprender o que faltou. Plantões, cooperativas… atrasa aqui, atrasa ali e, assim, vai-se tocando a vida profissional, na capital ou grandes centros urbanos. Trabalho no interior? Longe disso, afinal “quem faz carreira no mato é veado” (foi o que já ouvi de um recém-formado).

Bem, como o problema é, em princípio, de distribuição, porque nunca houve uma política eficaz de fixação do médico no interior (aliás, a má distribuição, nesta nacionalidade, não é só de médicos), ocorre ao governo importar médicos de Cuba, de Poutugal, de Espanha etc., para servirem no interior do país. Se isso ocorrer, que mal fará ao sofrido povo interiorano? Francamente, nenhum! Mas algo ocorrerá, com certeza: esse povo não quererá perder seu médico! Cubano, espanhol ou português, não importa, porque o que lhe interessa, a esse povo, é ter um médico que lhe dê atenção, ao seu sofrimento. O competente e presunçoso médico brasileiro, que ignora a dimensão humanística da profissão que exerce, para que lhe tem servido? De mim, prefiro o curandeiro atencioso ao médico pretensioso, essa figura presunçosa que prescreve droga que pouco conhece, para tratar doença que conhece menos ainda, a pessoa que desconhece totalmente (Voltaire). Não basta ser um grande médico, há que ser, também, para ser útil, um grande clínico. Que venham, pois, os estrangeiros… Se for para servir, sejam bem-vindos!

Fernando Guedes
23/5/2013
maio 21, 2013 - Poligrafia    1 Comment

Duas Éticas…

Falando sério: os padrões de “bondade” geralmente reconhecidos pela opinião pública não são calculados de modo a tornar o mundo mais feliz. (Bertrand Russell)

 

Os telejornais divulgaram hoje o boato que a bolsa família acabaria, causando, entre os beneficiários da esmola, o pânico, de ter que ganhar o sustento trabalhando. As imagens mostradas pela televisão, nas filas dos bancos, das lotéricas, não eram de pessoas inválidas, descamisadas, subnutridas. Ao contrário, era de uma legião de capazes, bem vestidos, gordos, do assistencialismo viciados…

Logo veio a reação oficial… A Senhora Presidente, em comício (as inaugurações de obras nesta estúpida república é sempre oportunidade de comício), no Recife, antes de apurados os fatos, sentenciou: – É um crime, e colocou a polícia federal no encalço dos responsáveis pelo boato (que poderia ser uma boa notícia: “Brasileiros e brasileiras”, agora é a hora de trabalhar!). Uma ministra de Estado logo identificou a origem: a oposição! Que reagiu indignada, na voz de deputados e senadores, que se apressaram em desmentir sua culpa, mas sem deixar de defender o assistencialismo, para, como se diz na gíria, ficar bem na fotografia

Entrevistada, numa das filas, uma senhora, bem vestida, desenvolta, disse ao repórter: – Estou aqui com alguns cartões, para sacar o dinheiro, porque disseram que ia acabar… – Todos esses cartões são seus? Perguntou o entrevistador. Na reposta: – Não, são de pessoas que me pagam para receber, a definição da primeira ética: Utilitarismo.

As pessoas que pagam para receber, porque estão trabalhando, não devia receber, mas se acham no direito de haver, eis o egoísmo ético, o superlativo do utilitarismo.

Enquanto almoçava, em casa, minha empregada colocou-me a par da saúde de sua tia (paciente que atendi na emergência), que fora visitar no interior, no final de semana. Lá, na comunidade onde fora, estava ocorrendo o cadastramento da bolsa família… Alguém lhe sugeriu que fizesse o cadastramento para receber a bolsa, o que já havia feito alguns familiares seus. Ela, entretanto, repeliu a oferta com indignação: – Tenho meu salário, fruto do meu trabalho, e me recuso receber o que não tenho direito, porque não trabalhei para ganhar esse auxílio. Nesta resposta a definição da segunda ética: Deontologia.

Na primeira, o fim. É bom; é conveniente receber, ainda que não precise, sem trabalhar. Na segunda, o dever. O princípio: ainda que seja bom, que seja conveniente, não o quero, porque minha consciência o repele.

Na primeira, os “bons”, essa classe cujas opiniões e atividades agradam aos que exercem o poder. Na política, os “bons” têm suas utilidades, das quais a principal é formar uma cortina de fumaça atrás da qual os outros podem exercer sem suspeita as suas atividades.

Na segunda, os “maus”, a classe dos que não transigem com os princípios, cujas opiniões desagradam aos que exercem o poder. Esses não prosperam na política, porque sua ação, sendo chama, queima, cauteriza, não produz a fumaça enganadora, para ocultar suas intenções.

Na primeira, o mundo de Sancho, de Tartufo, de Gil Blas, os que vivem de expedientes, simulando, enganando… Crescem porque sabem adaptar-se à hipocrisia social, como as lombrigas ao intestino (Ingenieros).  Na segunda, o mundo de Quixote, de Cyrano, de Stockmann, os que vivem por ideal, dignos, solitários, sem exibir na anca qualquer marca de ferro. São como a rês rebelde que fuça os terrenos trevos da campina virgem, sem aceitar a fácil ração das manjedouras (Ingenieros). Preferem estar sós, enquanto são podem juntar-se com seus pares. Afinal, a flor englobada num ramalhete perde deu próprio perfume…

Nenhum Dante elevaria a Gil Blas, Sancho e Tartufo até ao rincão de seu paraíso onde mora Cyrano, Quixote e Stockmann. São dois mundos morais, duas raças, de temperamentos: sombras e homens. Sempre haverá evidente contraste entre o servilismo e a dignidade, a torpeza e o gênio, a hipocrisia e a virtude. Por isto, duas éticas…

 

Fernando Guedes

20/5/2013

maio 21, 2013 - Medicina do Trabalho    1 Comment

Trabalho: Risco Profissional

 
Deus ao mar o perigo e o abismo deu; Mas nele é que espelhou o céu. (Fernando Pessoa)
 
Os TLVs e os BEIs não são linhas divisórias entre exposições seguras e perigosas, nem são um índice relativo de toxicologia. Não são estimativas quantitativas do risco em diferentes níveis de exposição ou por diferentes vias de exposição. (ACGIH)
 
O que transforma dor emocional em toxicidade, especialmente em ambientes organizados, é a resposta dada à dor de maneira nociva e não curativa. (Peter J. Frost)

 

Para a Infortunística, “parte da Medicina Legal que estuda os infortúnio ou riscos industriais, sejam agudos, físicos e químicos, propriamente acidentes do trabalho, sejam subagudos ou crônicos, tóxicos e biológicos, as doenças profissionais”, é o perigo inerente ao trabalho, base doutrinária do direito acidentário desde 1919, entre nós. Não é sem razão: um velho provérbio afirma que, onde há o homem, há o perigo.

O primeiro doutrinador foi Émile Cheysson, num celebre artigo do Journal des Economistes, em 15 de maio de 1888, cujo compêndio é este:

O risco profissional é o risco aferente a uma determinada profissão, independente da falta do patrão e dos operários. Malgrado das precauções tomadas, produzir-se-ão sempre acidentes, sem que a maior parte deles resulte de falta alguma. É por uma ficção humanitária que os tribunais se esforçam por achar uma falta, por criá-la mesmo onde não existe, para indenizar as vitimas. Uma vez que a industria comporta riscos inevitáveis, o operário não deve nem pode suportá-los, hoje mesmo que nunca, em presença do maquinismo moderno e das forças que o acionam”.

Assim, madrugou, com a doutrina, o conceito médico-legal de acidente do trabalho e de doença profissional, pois que firmado o postulado: o trabalho tem riscos próprios, conexos à sua natureza e ao seu exercício. Para a medicina do trabalho, risco deve ser a capacidade que tem o trabalho de causar lesão corporal ou perturbação funcional ou, no extremo da ação lesiva, a morte de quem o exerce. Somente isso, e para isto não é preciso medir nada. Ramazzini, o precursor da medicina do trabalho, na aurora do século XVIII, em 1701, sem jamais ter ouvido falar em higiene ocupacional, foi capaz de compreender isto. O médico do trabalho, para saber o risco que alguém corre de contrair tuberculose, precisa saber apenas que o bacilo de Koch esteja presente na cadeia de transmissão. Se o catarro proveniente da pneumonia cavitária do caso expele 1 milhão ou 100 milhões de bacilos/ml, é-lhe indiferente. Ali, naquele ambiente, há presente, não há negar, uma força de associação entre a exposição e o risco de uma consequência. Que consequência? Doença ou não doença!

A Epidemiologia, ciência básica da medicina preventiva, nesse passo, através de seu capítulo analítico, dirá que há duas medidas para estimar essa força de associação entre a exposição e o risco de adoecer:

1)      Risco relativo, uma razão, entre a incidência da doença nos expostos e a incidência dela nos não expostos.

2)      Risco atribuível, uma diferença, entre incidência da doença nos expostos e a incidência nos não expostos.

Disseram-me, outrora, no curso de especialização em medicina do trabalho, o que tomei por tese: a par clínica, sempre soberana, epidemiologia é o instrumento básico da medicina do trabalho, para estudar distribuição das doenças profissionais e os determinantes de sua prevalência nos trabalhadores…

Mas hoje esse conhecimento vem sendo substituído por uma crença, procedente de uma técnica a quem não incumbe o estudo do organismo humano, de que risco é diverso de perigo, que através de um se pode controlar o outro, ao ponto de não existir nenhuma possibilidade de adoecimento, durante toda a vida laboral, quando a exposição a certos agente químicos estiver abaixo do nível de ação.

Se o acidente do trabalho (trauma agudo) e a doença profissional, incluindo a do trabalho (trauma crônico), não tivessem a consequência jurídica que têm, conquista de renhida luta social, não se importariam, como se importam, com esses traumas, nem empregador nem médico adepto dessa crença…

Transcrevo aqui, ipsis litteris, trecho de um dos nossos clássicos doutrinadores:

O risco profissional é o caso imprevisto, imprevisível, que sucede, e pode não suceder, o incidente, o acidente. Na atividade, e, mais, na atividade aplicada ao trabalho, – em que o homem subjuga e põe a seu serviço a colaboração de energias físicas, químicas, combinadas, utilizando matérias primas deletérias, às vezes contaminadas: em meios restritos, sem conforto, quase sempre nocivos à saúde; sob condições inerentes ao trabalho industrial – os riscos são constantes, o acidente não mais casual, porém previsível, acidente do trabalho ou doença profissional. Com os progressos da ciência, da indústria que lhe aproveita os conhecimentos, vão se obviando tais e quais riscos; também com a educação higiênica, a proteção das máquinas e a proteção do corpo humano contra elas, o saneamento das indústrias, o bem estar que promove a justiça do salário. A equidade do repouso, alimentação devida, a oficina e lar asseados.”

Prossegue o mestre, neste passo:

Mas ainda haverá muito a esperar da ciência e da indústria, do progresso e da rotina, da precaução e da imprudência, para o mínimo dos perigos do trabalho.”

E, sem tergiversar, como sábio que era, arremata:

Muitos, desses riscos, subsistirão, irredutivelmente: basta considerar, alem daqueles que vem da manipulação de matéria prima perigosa, tóxica e até infecciosa que determinam a doença profissional… aqueles outros que resultam da psicologia do trabalhador e do trabalho.”

Estes irredutíveis riscos industriais, e mais os de agora, ainda infelizmente não obviados, constituem o risco profissional a que está sujeito o operário, pelo fato mesmo de sua profissão, condição inerente do seu trabalho. Daí o postulado: o trabalho tem riscos próprios, conexos à sua natureza e ao seu exercício.”

Esta é a doutrina infortunística que ainda hoje respalda o nosso direito acidentário. Assim, para o médico do trabalho, por mais que sejam avançados os processos de prevenção, por mais eficaz que seja a educação do operário, uma quota de risco restará sempre inextinguível, porque a medicina, não obstante o formidável avanço alcançado nas últimas décadas, ainda não pode prever até aonde vai a susceptibilidade individual, numa palavra, em linguagem moderna: as determinantes genéticas.

Não importa quão intrinsecamente tóxico (perigoso) seja o agente ambiental; se não houver exposição, não há risco (Goldstein & Gochfeld). Nos passos dessa lógica, sabidas ou ignoradas as suscetibilidades individuais, chaga-se ao corolário, que ao médico do trabalho não é licito ignorar: exposição, seja ele qual for, implica risco, porque nem todos os hospedeiros respondem igualmente à mesma dose ou estímulo de um agente.  E, para por termo a esta argumentação, a distribuição da suscetibilidade em uma população geralmente é desconhecida (Goldstein & Gochfeld).

Para a infortunística, o empregado está sujeito a três modalidades de risco. Primariamente, como homem, expõe-se ao risco genérico a que se expõem todos os homens, quaisquer que sejam suas atividades ou ocupações. Secundariamente, porque empregado, está sujeito ao risco específico do trabalho que lhe incumbe realizar. Finalmente, em situações particulares, o risco genérico se agrava em virtude de circunstâncias especiais do trabalho ou das condições em que este se realiza, resultando um risco genérico agravado. Verbi gratia, o torrista, na atividade de perfuração de poços de petróleo, está constantemente sujeito ao risco específico de lesar a mão no elevador da torre, porque é inerente à sua atividade travar e destravar essa engrenagem. Mas, durante uma tempestade, estará exposto ao risco genérico agravado de ser fulminado por um raio, sabida a maior frequência de queda de raios em estruturas elevadas. Consideram-se, para os fins da proteção legal, como decorrentes do trabalho os acidentes que resultem dos riscos específico e genérico agravado.

Entre outras informações, ao definir o conteúdo do atestado de saúde ocupacional, que o médico do trabalho deve expedir, ao concluir o exame ocupacional, a NR7 dispõe: “os riscos ocupacionais específicos existentes, ou a ausência deles, na atividade do empregado”.

E remete o esclarecimento para Nota Técnica, que diz isto:

Devem constar do ASO os riscos passíveis de causar doenças, exclusivamente ocupacionais, relacionadas com a atividade do trabalhador e em consonância com os exames complementares de controle médico.” “Entende-se risco(s) ocupacional(ais) específico(s) o(s) agravo(s)  potencial(ais) à saúde a que o empregado está exposto no seu setor/função”.

Com efeito, isso pode confundir o médico que não se dá ao trabalho de submeter textos mal redigidos à hermenêutica, que poderia lhe trazer a correta interpretação do sentido. Passaria, por acaso, pela assessoria jurídica do Ministério do Trabalho, uma Norma Regulamentadora ou Nota Técnica, cuja aplicação viesse conflitar com a Lei Ordinária que dispõe sobre a matéria? Seria extravagante…

Para confundir ainda mais, “médicos higienistas ocupacionais” trazem, para essa discussão, alienada da medicina legal, capítulo relegado ao olvido (lamentavelmente, virou coisa de “legista”, esses que cuidam de defuntos) a diferença que entendem haver entre risco e perigo, apresentada com presunçosa dedução cartesiana.  Pregam que perigo é a qualidade inerente ao agente, que não se pode atenuar (não se pode alterar a qualidade tóxica do benzeno, decorrente de sua natureza química). Risco é o perigo veiculado pela concentração ou intensidade do mesmo agente, no ambiente de trabalho. Assim, para eles, o perigo do agente (que não pode ser atenuado), pode, entretanto, ser tolerado, através do controle do risco (pelo controle do seu veículo: a concentração ou intensidade), por sua técnica, que reputa infalível.

Seguindo essa lógica, o n-hexano presente no ar expirado, em um laboratório de indústria química, em concentração abaixo do nível de ação (metade do LT), não é risco, porque o perigo de lesar o sistema nervoso periférico do empregado, próprio de sua natureza química, pode ser tolerado, porque a concentração (veículo do perigo) acha-se atenuada. Assegura-se, assim, que nenhum empregado daquele GHE (grupo homogêneo de exposição) não contrairá neuropatia periférica, durante toda a vida laboral! Formidável: certo, cartesiano, unifatorial, sempre dose-dependência: baixa concentração: não adoece; alta concentração: adoece. Se avaliações estatísticas, de médias ponderadas, demonstram isso para “grupos homogêneos de exposição”, isto é certo para o indivíduo… Deduzem, com o radicalismo de uma crença.

A lógica médica (medicina do trabalho e medicina legal) é outra… O médico do trabalho, por dominar conhecimentos de outra ordem, por saber quão vária é a interação do agente com o hospedeiro, por não ter dúvida acerca da incerteza dos efeitos em face das causas, se é prudente, não deve atestar que não há risco, quando um agente químico tóxico, presente, estiver abaixo do nível de ação. Porque, entre outras razões médicas, essa linguagem não é médica. Aqui, não há negar, por se tratar de acidente do trabalho (e das doenças que lhe equiparam), a linguagem inescusável é a médico-legal.

Evidente que a higiene industrial é importantíssima, no seu devido lugar… Buscando, com sua técnica, sanear o ambiente de trabalho, através do rigoroso controle das diversas exposições, atenuando as causas (as energias químicos, físicas, biológicas, combinadas, etc.) no período pré-patogênico das doenças… Mas, bem o sei, é dificílimo desconstruir uma crença, que se reveste a si mesma de pretensa lógica científica… Não tendo capacidade (nem pretensão) para tanto, deixo claro a minha certeza que o empregado exposto a um agente químico tóxico, mesmo em concentração abaixo do nível de ação, pode, em face dessa mesma exposição, adoecer. Isto, para mim, não é suposição estatística, não é uma crença fora do credo médico, é o próprio risco profissional. Se ao médico do trabalho fosse possível assegurar que baixas concentrações, como essas que não caracterizam risco, para a higiene industrial, não causam, jamais, qualquer dano à saúde de ninguém, ser-lhe-ia seguro atestar, nessa condição, a ausência de risco. O condicional, entretanto, desconstrói, por mim, essa hipótese…

E a lógica entre os fatos, tornando-se instrumentos de convicção, é tudo em medicina prática. Também, nas outras esferas do saber humano, só é ciência por fora o que for lógica por dentro (Francisco de Castro).

Olho, neste instante, pelo retrovisor da minha existência e diviso longe, muito distante, o ano das minhas aulas de propedêutica médica… Essa lonjura, entretanto, não foi capaz de “deletar”, da minha memória,  o “PDF”  onde leio: em medicina, como no amor, não há nunca, nem sempre! Espero, até à data da aposentadoria, quando encerrarei definitivamente o exercício da medicina, não ser exposto ao risco (ou perigo) de deleção de uma certeza: medicina do trabalho é Medicina…

Fernando Guedes
17/5/2013
maio 12, 2013 - Poligrafia    3 Comments

O jardim de minha mãe

 
De noite, alta noite, quando eu já dormia
Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Quem é que meus lábios dormentes roçava,
Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?
Casimiro de Abreu

 

“Aos oito dias do mês de setembro de mil novecentos e dezesseis nesta Villa do Riacho de Santa Anna, em meu cartório, compareceu o Sr. Major Antônio Pereira de Castro, residente nesta Villa, no lugar chamado São Felix, e declarou que no dia vinte e seis de junho deste corrente ano em casa de sua residência, às duas horas da manhã, nascera uma criança do sexo feminino, branca, que já está batizada e tem o nome de Guiomar, filha natural de Maria de Souza Filgueira,s do que para constar fiz este termo em que assino com o declarante e testemunhas. Eu, Osório Guimarães Silva, escrivão de Paz, o escrevi e assino”.  É o que consta no Livro dos termos do Registro Civil de Riacho de Santana, sob número 3.224, página 25.

Minha Cara amiguinha Rosa. O meu casamento, querendo Deus, se realizará às 2 ½ horas do dia 2 de julho vindouro. Espero que tu não me hás de faltar com a tua amável presença, não só para assistir os atos, religioso e civil, como para passar comigo algumas horas. Por este grande obséquio que estou certa me será dispensado, de já agradece.  A amiguinha sincera Guiomar Celeste de Castro. Riacho de Santa´Ana, 26 de Maio de 1937.” Numa simples folha de papel, a simplicidade do seu convite de casamento!

Casou-se, nessa data, com Manoel Pereira Guedes. Passaram-se os anos: um, dois, três… Mas os filhos não vinham. Tratamento, com a rudimentar medicina de então, e nada de gravidez. A um passo da desilusão, apelou para Santo Antonio, que lhe mandou o primeiro, em 1950: Antonio Fernando (franciscano-agostiniano). Em 1952, o segundo: Fernando Antonio (agostiniano-franciscano).

Daí até sua morte, aos 67 anos, uma vida toda dedicada ao marido, aos filhos e ao lar. A educação austera que lhe dera os pais, e o convívio com seus avós, a quem servira quando moça, resultou numa personalidade estoica, reta, inflexível, sobretudo justa.

Quis homenageá-la neste dia das mães e, ao fazê-lo, só me veio em socorro da inspiração uma valsa… A mais bela, entre tantas que conheço, que me traz gratas recordações: O jardim de minha mãe (El jardín de mi madre), de Hector Domingo Marcolongo, grande compositor portenho, cuja obra poética sempre admirei.

Em um rincão da alma, onde minhas ânsias dormem, ali onde o carinho e a fé não têm fim, formei para minha mãe, com sonhos e lembranças, com flores de outro mundo, um mágico jardim

Nesse jardim cantam seu nome os pássaros em voo e, nas noites quando o céu se torna mais azul, minha mãe, com sua voz amorosa, sorri e me chama para ouvir os mistérios dos sinos…

Os lírios de suas mãos abraçam os meus beijos, e embriaga com o seu conselho a rosa do perdão… E assim o jardim de minha mãe se rega na paz, com as águas do meu coração.

Num rincão de minha alma, com luzes de outro mundo, eu vivo com minha mãe um mundo superior. Seus olhos são estrelas que cintilam no firmamento do meu coração; sua face luminosa é a lua que alumia minhas noites escuras. 

Hoje, enquanto ela me sorria, nesse misterioso jardim, colhi as brancas açucenas que rego com o orvalho do meu carinho, para enfeitar seu jarro de bondade, que o relicário da minha saudade…

 Fernando Guedes
12/5/2013
 

		
					
maio 2, 2013 - Poligrafia    No Comments

Congresso vs. Supremo: hoje como ontem…

 

O judiciário é o mais fraco dos três ramos do poder e, conseguintemente, o menos propenso a usurpar, não tendo influencia alguma sobre a espada ou a bolsa pública. (Alexander Hamilton)

The United States Supreme Court is competent to declare a questioned act of Congress to be unconstitutional and void in certain cases. (Alfred Coxe)

A história é uma galeria de quadros onde há poucos originais e muitas cópias. (Tocqueville)

 

Tomei como uma pilheria a reação de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal contra a aprovação da tramitação, na Câmara dos Deputados, da PEC 33, que  pretende diminuir a competência constitucional daquela corte…

Somente os que ignoram a história não se dão conta dos precedentes… Ao tomar posse da presidência do Instituto dos Advogados, há 99 anos, sobre que versou o discurso do empossado? Abro-lhe aspas: Cada um dos poderes do Estado tem, inevitavelmente, a sua região de irresponsabilidade. É a região em que esse poder é discricionário. Limitando a cada poder as suas funções discricionárias, a lei, dentro nas divisas em que as confina, o deixa entregue a si mesmo, sem outros freios além da idoneidade, que lhe supõe, e do da opinião pública, a que está sujeito. Em falecendo eles, não há, nem pode haver, praticamente, responsabilidade nenhuma, neste particular, contra os culpados. Dentro do seu círculo de ação legal, onde não tem ingresso nem o corpo legislativo nem a justiça, o Governo pode administrar desastrosamente, e causar ao patrimônio público danos irreparáveis (RUI). Vem de longe, pois, nesta esquizofrênica República, o perigo, que os contemporâneos conhecem em forma de obras superfaturadas, inacabadas, desvios de verbas do erário, indústria da seca, desleixo para com a educação, para com a saúde pública, impunidade e seu epílogo mais funesto: a violência em descontrole…

Por sua parte, o Congresso Nacional, sem ultrapassar a órbita da sua autoridade, privativa e discricionária, pode legislar desacertos, loucuras e ruínas. Onde a responsabilidade legal, a responsabilidade executável contra esses excessos? E, se os dois poderes políticos se derem as mãos um ao outro, não intervindo, moral e maritalmente, a soberania da opinião pública, naufragará o Estado, e a nação poderá, talvez, soçobrar (RUI). Evidente que, se houvesse honestidade e a soberania popular existisse na prática, esta nação estaria em outro estágio de desenvolvimento. Desculpa-me, caro leitor, desapontá-lo: é ingenuidade, se não for ignorância, essa pretensão de uma moralidade pública onde a idoneidade e a soberania popular se anularam. Contra tais desacertos bastaria a responsabilidade da conta que todos os órgãos dessa soberania a ela devem.

Ontem, como hoje, sem tirar nem pôr… “Agora o chiste da reforma projetada. O que ela inculca, é que, em exercendo o Supremo Tribunal Federal, quando de tal atribuição faz uso, a sua competência (de declarar a inconstitucionalidade de atos dos outros poderes) o Senado o chama a contas, o julgue, e o reprima… Supondo que esse tribunal, ao declarar inconstitucional um ato do Poder Legislativo, exorbite da sua competência, qual é a competência de que ele exorbitou? A competência de sentenciar que, perpetrando esse ato, o poder Legislativo era incompetente” (RUI).

Indaga e responde: Tem o Supremo Tribunal Federal autoridade semelhante? Ninguém o poderá negar; visto como o art. 59 (hoje art. 102) da nossa Carta republicana obriga esse tribunal a negar validade às leis federais, quando contrárias à Constituição, e as leis federais são contrarias à Constituição, quando o Poder Legislativo, apontando tais leis, não se teve nos limites, em que a Constituição o autoriza a legislar. Como admitir que da competência do Supremo Tribunal Federal, nessa decisão, possa vir a ser árbitro, ulteriormente, o Senado (pretendem que venha a ser o Congresso), isto é, nem mais nem menos, uma das duas Câmaras do Congresso? E arrematou com aquela coragem cívica que o definia: É o superlativo da irrisão, o nec plus ultra do absurdo. Atentai bem. Da competência constitucional da Câmara e do Senado, reunidos em Congresso, o último juiz é o Supremo Tribunal Federal (RUI).

Mais adiante… Um regime, que desse a um tribunal a incumbência de negar validade às leis inconstitucionais, e, ao mesmo tempo, reconhecesse ao corpo legislativo o direito de proceder contra as sentenças desse Tribunal, considerando-as como atentados contra a legislatura, seria a vesânia organizada (RUI). E, com atualidade insofismável, conclui: O que se guarda, pois, no bojo desse tentame, destinado a sumir-se e ressurtir com as reaparições ou os eclipses da legalidade na existência nacional, é a transformação do regime democrático na oligarquia de uma facção, imperante no Congresso e centralizada no Senado (RUI).

Suspeita origem teve o atual destempero… “Nasceu das transcendestes aspirações de uma política decidida a remover todos os tropeços da legalidade no seu caminho para a dominação total do País”, nessa Comissão de Constituição e Justiça, onde parlamentares condenados pelo Supremo Tribunal Federal tramam o absurdo de submeter esse tribunal a um constrangimento sem propósito.

Por outro lado, é um acinte à nação esse velho costume da indicação de amigos do Floriano (com calças ou saia) de plantão no Planalto, como ao cavalo Incitatus cônsul, pela loucura de Calígula; aqui Barata Ribeiro (médico) e Inocência Galvão (general) ministro do STF, pelo despotismo presidencial, que continua a nomear ministros a advogados nem sempre de notável saber jurídico, que o Senado, cúmplice, nunca veta, para não se falar em reputação ilibada. Daí a exorbitância de se interferir no outro poder, antes da materialização do ato que suscita o início de sua competência constitucional. Mandar interromper, por liminar, tramitação de projetos no Congresso é asneira retaliando asneira. Os congressistas têm competência de fazer tramitar o que quiserem, porque são, nisto, discricionários. Depois, lei pronta, a competência do STF pode fulminá-la, por inconstitucional, antes que ela agrida a civilidade jurídica.

Para que o Supremo cair nessa besteira de, por liminar, proibir ao Congresso a tramitação do que quer que seja? Passe! Deixe-o vir… “Declara-o, depois, contrário à Constituição; e será como se tal projeto nunca houvera existido”.

Nós da Bahia tivemos, sempre, culto à Justiça, razão pela qual escrevo, com a precariedade da pena de médico, o meu protesto contra essa classe política nojeta que hoje, como outrora, enxovalha a Nação, conspurca o Estado, estiola o País. Culpa exclusiva da soberania popular que se anulou, sucumbida ao peso de sua própria inidoneidade. Onde não há civilidade e educação não pode haver soberania, que implica submissão à regra constitucional, que é a alma da Justiça.

Uma nação que se organiza mediante uma “república presidencial com onipotência do Congresso; com o arbítrio do Poder Executivo, apoiado na irresponsabilidade das maiorias políticas; na situação autocrática, em que se coloca, neste sistema, o chefe do estado”, é uma nação estúpida. Se a tal regime, que é precisamente o nosso, não se opusesse a “majestade inviolável da Constituição escrita, interpretada, em última alçada, por magistratura independente”, o resultado é que até o Supremo é tribunal político, julga com as conveniências do Governo e julga até conta a Justiça (AFRÂNIO PEIXOTO).

A Águia de Haia, na 5ª. Carta de Inglaterra, respirando oxigênio da civilidade britânica, a liberdade, disse: Se estivesse nas mãos de uma revolução converter a realeza dos Braganças na monarquia parlamentar da casa de Hannover, eu, em 15 de novembro, teria proposto a troca de Pedro II pela Rainha Vitória, a Cadeia Velha pelo Paço de Westmisnter (RUI). Mas, como tal prodígio não nos socorreu, sobraram-nos a reles “realeza-presidencial” de Florianos, do Catete ao Planalto, continuação um do outro (hoje uma do outro), e a melancólica constatação de que “se a Justiça é o supremo índice de civilização de um povo, devemos estar bem por baixo, na escala dessa civilização” (AFRÂNIO PEIXOTO).

 

Fernando Guedes
28/4/2013
maio 2, 2013 - Poligrafia    No Comments

Chorei e não procurei esconder…

 
 
Tenho saudades… ai! de ti, São Paulo,
– Rosa de Espanha no hibernal Friul –
Quando o estudante e a serenata acordam
As belas filhas do país do sul. (Castro Alves)
 
Salve nobre Paulicéia!…
Exílio da Mocidade.
Terra de névoas e sonhos
De cinismo e liberdade.(Castro Alves )

 

Tentarei, nesta linhas, dar a Volta por Cima… Anunciou-me o jornal a morte de Paulo Vanzolini, aos 89 anos. O que sei dele dá-lhe uma expressão plural, de cientista e boêmio, que lhe torna a personalidade encantadoramente simples…

Tudo de longe, admirando-o mais pela boemia que pela ciência… Médico, portanto meu colega; Doutor em Zoologia, por Harvard, trabalhou a vida toda no Museu de Zoologia, da Universidade de São Paulo, o que lhe valeu notoriedade científica internacional. Com Aziz Ab´Sáber, outro que sempre admirei, desenvolveu e aprofundou a Teoria dos Refúgios. Trabalhava, como costumava dizer, de dia e rondava de noite pela Paulicéia, para outras observações: as humanas, nos botecos, nas esquinas, nos bares, nos restaurantes… Servindo ao Exército, entre 1944 e 1945, de ronda no baixo meretrício, observou aquele tipo humano atormentado, inspiração da personagem que fez confessar:

De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar
No meio de olhares espio em todos os bares
Você não está.

 Que, assim, sem encontrar o homem predileto, torna à solidão:

 Volto pra casa abatida
Desencantada da vida

 Mas, sem ter quem bem lhe queira, para aconselhar a desistência, insiste, com perfeita paciência, em buscar… Vagado pelos bares, até que o encontrar

 Bebendo com outras mulheres
Rolando um dadinho
Jogando bilhar…

Como ver branco o negro e o negro branco, é próprio de amor… Como todo amor poetiza seu objeto; poetizar significa revestir de gratas mentiras, o amor contrariado

 Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João

Paulo, perguntou-lhe um entrevistador, você considera Ronda uma obra prima? Riu-se, com o desdém de sábio, e respondeu: “Acho piegas. Mulher que mata o amante…”

 A música, segundo seu próprio depoimento, foi gravada por acaso… Fora assistir a Inezita Barroso gravar a Moda da Pinga e se surpreendeu, ali, com o pedido de autorização para gravar a sua no lado B do disco, que não podia ser editado sem esse lado preenchido. “Eu nem sabia que disco tinha lado B…” Observou e autorizou! Disse, noutra entrevista, que a música ficou sepultada, por muito tempo, naquele duro lado B…

Contratado para editar um disco sobre suas músicas, Marcus Pereira, publicitário, incluiu Ronda entre os Onze Sambas e Uma Capoeira, cuja alta qualidade do arranjo a transformou no hino da alma boêmia, essa mesma que não se preocupa nem com colesterol nem com eletrocardiograma, para viver, se não muito, ao menos feliz.

E o Samba Erudito, Paulo, deu-lhe muito trabalho? A resposta, porque sincera, era sempre desconcertante: “Samba a gente faz por que quer, principalmente quando tropeça numa ideia”.  E que tropeço! Céu e mar, altura e profundidade da erudita inteligência:

 Andei sobre as águas
Como São Pedro
Como Santos Dumont
Fui aos ares sem medo
Fui ao fundo do mar
Como o velho Picard
Só pra me exibir
Só pra te impressionar

 Mas, mulher é sempre mulher…

Para tanta proeza
Põe um preço tão alto
Na sua beleza…

Só restando ao desditado…

Ante a força dos fatos
Lavei minhas mãos
Como Pôncio Pilatos.

Costumava tomar a condução para o Ipiranga, onde fica o Museu de Zoologia, na Praça Clóvis, de Clóvis Bevilaqua, notável jurista cearense e autor do projeto do nosso primeiro Código Civil… Ali, enquanto a condução não vinha, o zoólogo deixava o poeta observar, e este novamente tropeçou numa ideia:

Na praça Clóvis
Minha carteira foi batida
Tinha vinte e cinco cruzeiros
E o teu retrato.

Aquele retrato não devolvido, que ainda não foi aos pés de outra rasgado…

Esse retrato cujo olhar
Me maltratava e perseguia
Um dia veio o lanceiro
Naquele aperto da praça
vinte e cinco
Francamente foi de graça.

Sem mais o retrato que o maltratava e perseguia, deu Volta por Cima, afinal

Um homem de moral não fica no chão
Nem quer que mulher
Venha lhe dar a mão
Reconhece a queda e não desanima
Levanta, sacode a poeira
E dá a volta por cima,

no encontro de todas as suas Noites. Uma delas, a humana Ilustrada, leva ao sucesso a composição do poeta-cientista, resultando em muito dinheiro… Em que o aplicou? Em livros, para a biblioteca do Museu e na construção de um novo banheiro nessa biblioteca!

Mas, vencida a dificuldade com grandeza, notadamente se teve a ventura de ser um boêmio num cientista; de uma personalidade plural num homem simples, que pesquisava no laboratório com a mesma simplicidade que frequentava o boteco paulistano, estava pronto para empreender sua Ronda definitiva, até porque já tinha avisado:

Quando eu for, eu vou sem pena
Pena vai ter quem ficar.

Confesso que quando peguei na pena, para escrever, sem pena, esta simples homenagem, deu-me pena de não tê-lo conhecido pessoalmente.

 

Fernando Guedes

29/04/2013

Os versos são de autoria do Dr. Paulo Vanzolini, aqui citados para compor-lhe esta homenagem.

fev 8, 2013 - Poesia    No Comments

Congresso

Mote:

Como pode um político ficha suja,

É a pergunta que não quer calar,

Ser eleito para presidir o Congresso,

A casa do Poder Parlamentar?

                                                                                    (Darlan Fagundes)

 

Glosa: 

Casa da qual a honestidade não se espera,

Onde, descaradamente, triunfa a nulidade,

E a desonra impunemente prospera,

Renan a ela se iguala, na integridade…

-x-

Dizem, sem razão, que ali há honesto…

Não o creio, porque lá não permanece,

Sem se hipotecar a interesse funesto.

Sem se sujar na corrupção que lá floresce…

-x-

Ontem – Pinheiro Machado por o dono…

Hoje – Sarney e seus Maribondos:

Peçonha que impõe à nação letárgico sono!

-x-

Enquanto não se chega ao poder: Oposição,

Crítica e denúncia… Mas se arruma e cala,

É o poder próximo, a realidade da Situação!

                                               (Fernando Guedes)

                                                     8/2/2013

                                                                                                                                                                                                                                                                               

fev 8, 2013 - Poligrafia    11 Comments

Santa Maria…

Morro porque não morro.

Santa Tereza de Jesus

 

Um berço tem algo de sepulcro e é a merca  de nossa mortalidade que nos enterra no nascimento.

Bossuet

 

 

Pietà

Nesta sociedade imprevidente, tecnicista, que hospitalizou a morte, para se livrar dos seus transtornos, morrer virou um tabu… Hoje, a iniciativa passou da família, tão alienada quanto o desvivente, ao médico e à equipe hospitalar. São
eles os donos da morte, de seu momento e também de suas circunstâncias (Philippe Ariès). A morte foi transformada num mero fato técnico, deixou de ser um ato, cuja ritualística era presidida pelo desvivente na assembleia de seus parentes e amigos. O desábito cerimonial da morte explica a pasmo que a sua presença causa, mesmo quando se faz anunciar, por indiscretos sinais… Já não se dá conta de que a morte é a meta da vida, que esta se completa quando aquela chega. Não há, aqui, arguir tempo, na dimensão de prolongamento, porque a completude se dá com a morte, inexoravelmente.

A torrente que escorre encosta abaixo, o avião que toma rota errada e cai ou o edifício que o fogo destrói, matando grande número de pessoas, comove, consterna… Se a morte individual, pelo descostume em vivê-la, virou um drama, a coletiva, pelo despreparo emocional, é sempre uma tragédia. Ocasião propicia à eclosão de um espectro sentimental contraditório: da revolta à piedade, tudo… Faz aflorar o contágio por imitação, que induz caráter epidêmico às emoções: quem nada perdeu, por contágio imitativo sente-se perdedor…

Mil pessoas se aglomeram num recinto planejado para seiscentas… Entraram todas pela única porta, que serve, ao mesmo tempo, de entrada e saída. Ali, ao som de acordes dissonantes, bebem e dançam… Não basta! Querem mais, luzes intermitentes, faíscas cintilantes! Tudo isso, enquanto não vira uma tragédia, é normal, coisa da juventude…

Autoridades, empresários, artistas, pais e os próprios jovens, principalmente estes, não veem nada errado nisso… Ah! Os jovens, quem ousa contestá-los! Conselhos? É caduquice de velhotes! A diversão, que seria benéfica à saúde mental, tem, na atualidade, algo de suicida. Mira y López, que os contemporâneos julgam ultrapassado, nesse psicologismo extravagante, foi preciso: Converter a diversão em um frenesi, em uma degradação ou em uma ridícula exibição de insensatez é ainda pior que se entediar. Constato-o, todos os sábados, no meu plantão de emergência!

Uma peça pirotécnica, que lança faíscas à altura do teto, revestido de material combustível, é acesa para incrementar ainda mais a excitação coletiva… As centelhas lançadas, ali presentes as condições da combustão, iniciaram o fogo… Não estavam presentes os meios de combate, todos o sabiam. O fogo gerou o incêndio, que produziu fumo tóxico, em ambiente sem exaustão… A atmosfera venenosamente rarefeita casou a asfixia de muitos, que, por isto, morreram… Outros tantos queimados gravemente… Dão-se, enfim, conta da tragédia! Instala-se o pânico e, no meio deste, sem preparo e equipamentos apropriados, sem nenhuma condição de avaliar risco, improvisam o salvamento de vítimas. Como a imprevidência agrava o risco, morreram tentando salvar…

Mais de duas centenas de mortos são a trágica contabilidade desse episódio, que pode aumentar, à medida que outros, graves, não resistam à injúria respiratória ou às complicações das queimaduras…

Agora, casa caída, a consternação se mistura com a desfaçatez, em busca de explicação para o que já estava explicado desde o início… As tragédias, aqui, se sucedem e nada ensinam, nem às autoridades, nem ao povo, fixado nessa mentalidade de esperar, sempre dependente, pela proteção daquelas…

Agora, ignorado o óbvio, buscam ridículas desculpas para inescusáveis culpas… O Alvará? Vencido! E daí? Agora é tarde… E o extintor de incêndio? Não funcionou! Por que o não verificou antes? Onde as portas de emergência? Não existiam! Que adianta saber disso agora, se todos o sabiam desde sempre? Quantas boates e discotecas há neste país com porta única, para entrar e sair? Quantas!

Agora, chão aberto, prefeito, governador, presidente, ministros se desvelam, como nunca o fazem ordinariamente… Agora, depois da tragédia, falam em estatuto de segurança, em rigor na fiscalização, em código de edificações, em proibição do que nunca devia ser tolerado. Agora… Mont’Alverne diria: É tarde! É muito tarde! Sim, tarde… Como tudo nesta desgraçada nacionalidade, onde nunca se faz coisa senão de má vontade, tarde e mal (Ruy).

Evidente que as circunstâncias desse episódio chocam, revoltam. Evidente que quem perdeu, naquelas condições, o objeto do seu amor, confrontando-se com a realidade dessa dolorosa perda, terá que sofrer o luto, que é somente seu. Espera-se, como é de regra, que esse trabalho lutuoso não venha a comprometer demasiadamente a economia psíquica dos enlutados, levando-os, ao cabo, à reconciliação com seu próprio Eu.

Tenho lido e ouvido avaliações absurdas acerca desse acidente, com os exageros de sempre. A perda familiar, indiscutivelmente, é imensurável, mas essa tragédia é pessoal, dolorosamente individual. Aquela desoladora solidão que Maria, silente, sentiu ao ver o Filho na Cruz pregado… Por ser exorbitante, não é necessária nenhuma hipérbole, para a correta avaliação do sofrimento humano que causou a quem perdeu. Quem ali realmente perdeu certamente não chorou com lágrimas, porque a grande dor enxuga as lágrimas, as congela e as seca. Assim como a luz moderada faz ver e a excessiva faz cegar, a dor, que não é excessiva, rompe em vozes; a excessiva emudece (Vieira).

Analisando os impactos emocionais da tragédia, um psicólogo, pela televisão, afirmou, entre outros juízos, ser antinatural uma mãe ter que sepultar seu filho…  É engano, porque a natureza mesma da morte rejeita a sequencia calendárica!  Exemplo dos exemplos: Maria sepultou Jesus! Aquela espada que Simeão previu transpassando-lhe o peito é a mesma que agora fere o peito das Mães de Santa Maria. Quanta aproximação!… Quem teve a oportunidade de se deter diante do magnífico mármore de Michelangelo, em que Maria toma o filho morto no regaço (Pietà), e observou a serenidade daquele rosto angelical, entenderá o que a psicologia nunca saberá explicar…

O doce Virgílio, disse Unamuno, em página magistral Del sentimiento trágico de la vida,  nos faz ouvir as vozes e os vagidos queixosos das crianças que choram à entrada do inferno (Eneida, Canto VI). Crianças roubadas ao seio materno, para serem mergulhadas na morte cruel… Deixando a essas mães o eternal pranto de sua dor!

Não obstante tudo isso, não é essa tragédia única, nem mais extensa, nem mais dolorosa que outras tantas, que ocorrem na sombra da indiferença, que não viram manchetes, que não despertam o interesse de ninguém… Se os pulmões foram o alvo na tragédia de Santa Maria, eles o são na tragédia diária da tuberculose, que matou, nos últimos 10 anos, cerca de 50.000 brasileiros, numa média de 4.913 mortes por ano. Santa Maria teria que se repetir 20 vezes, para matar o que a tuberculose mata a cada ano, sem despertar nenhuma emoção, sem causar nenhum constrangimento…

Não sou quem busca as aproximações, são elas, caro leitor, que se me apresentam… Assim é inevitável tornar a Unamuno, à conclusão de La agonía del cristianismo: Santa Maria, Mãe de Deus, roga por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Agora, agora, que é a hora de nossa agonia.

 

Fernando Guedes

6/2/2013

 

jul 16, 2012 - Poligrafia    6 Comments

Cinco, dezenove, cinquenta e seis…

 
Política: é a arte de tomar, manter e utilizar o poder.
André Comte-Sponville

 

Oitenta! Não é, simplesmente, o resultado da votação que cassou o mandato de Demóstenes Torres, no Senado Federal… Não, não é somente isto! Há mais: é o retrato do Brasil político… Quer conhecer o Brasil político? Ei-lo: Cinco, dezenove, cinquenta e seis!

Estranho? Pode ser… Fácil, contudo, de ser explicado. Começo pelo meio. Os dezenove que votaram contra a cassação do mandato de Demóstenes Torres são, nesse estranho teorema estatístico-político-moral, os éticos. Penso, de boa fé, que os dezenove votaram orientados pelo o ensinamento evangélico: Antes de apontar o argueiro no olho de teu irmão, retira, primeiro, a trave que tens nos próprio olho… Por que cassariam o mandato de Demóstenes, se os pecados arguidos eles cometem igualmente? Foram rigorosamente éticos!

Irreverente, franco, tanto que chegava parecer deseducado, o sábio J. J. Calmon de Passos ensinava: Ladrão que rouba e declara o roubo age com ética, porque a ética é o discurso veraz. Se essa ética existe, é porque há uma moral que a justifica. Conviver ou não conviver bem com ela (a sociedade) é outra história.

Os cinco são, a meu juízo, o grande problema em qualquer sociedade… Entre cassar ou não cassar o mandato de Demóstenes esse grupo preferiu não decidir, não mostrar sua convicção. São assim: têm a cara repulsiva da abstenção. Ignoram, de propósito, o mérito das coisas; lavam as mãos em face das aflições humanas; abstêm-se quando seu interesse periclita. Assim os covardes, os pusilânimes, os juízes políticos e comodistas. São, em face das opressões, surdos e cegos. São a parcialidade da imparcialidade, por isto mais perigosos, porque agem à sorrelfa, esquivando-se sempre. Não se comprometem; nunca se mostram de frente, sempre se apresentam em enganador perfil. São, para mim, medíocres hipertrofiados, que, em todos os tempos, nunca foram maioria na humanidade; não o são no Senado… Fazem, contudo, grande mal!

Os cinquenta e seis são os hipócritas! O indivíduo-tipo desse grupo cabe, como a luva em mão certa, no perfil que Igenieros descreveu nO Homem Medíocre. Inclinados menos ao ódio que à hipocrisia, formam uma grei cujo elo de união é a falsidade. Simuladores, julgam sentados no próprio portfólio dos pecados que condenam. Apontam cisco no olho de outros, sem tirarem o argueiro do próprio. Sabidos, agem com meticulosa intenção de confundir. Quem assistiu a Demóstenes acusar Renan, em processo semelhante de cassação de mandato, idealizou Cícero invectivando contra Catilina… Demóstenes será sempre um simulador, e simulou tanto que terminou enredado na própria simulação.  A simulação é assunto para uma tese; em política, para várias…

Entre eles há interesse e não amizade, por isto, como doutrinou Igenieros, a política pode criar cúmplices, mas nunca amigos. Como nos hipócritas as cumplicidades se extinguem com o interesse que as estabelece, sacrificaram o mandato de Demóstenes, para salvarem sua precária imagem de moralidade. Tudo mentira… Tudo falsidade…

Quem pensa que na sociedade é diferente, engana-se. Esse ufanismo doentio que nos faz donos do Cruzeiro do Sul, que nos insufla grandeza tão ridícula: nosso céu tem mais estrelas, nossos bosques têm mais flores, nossas vidas mais amores etc. é sinal patognomônico de uma moral precária, essa mesma que leva o vulgo à conclusão que o deslize moral de Demóstenes é diverso de avançar um sinal de transito vermelho; de consumir produtos piratas; de sonegar imposto de renda, com recibos falsos; de utilizar carteira de estudante, não o sendo, para pagar meia-entrada; de utilizar atestado médico, estando sadio, para se esquivar de uma responsabilidade; de burlar planos de saúde, fazendo uma pessoa passar por outras nas emergências, de receber ou oferecer caramelos como moeda de troco, de simular doença para obter vantagem etc. etc. etc. Há poucos dias eu me encontrava na fila do caixa de um supermercado… À minha frente, com um carro de compras, três senhoras: uma idosa a quem as duas outras chamavam de mãe. Uma dessas adiantou-se, sacou da carteira seu cartão de sócia e o apresentou à funcionária. A irmã mostrou-se interessada em possuir o cartão de sócia. A outra, esbanjando esperteza, aconselhou: não é necessário. Para que pagar mensalidade sem necessidade? Vou lhe passar o meu CPF e uma cópia do meu RG. Quando quiser comprar diga, no balcão de atendimento, que esqueceu o cartão em casa e solicita um provisório.  Simples, não é? Pois bem, que diferença moral tem esse ato do que a Demóstenes custou o mandato de senador? Nenhuma! A diferença está apenas na hipocrisia com que os moralistas da sociedade reclamam a retidão moral dos políticos. Esquecem, entretanto, que os políticos, todos eles, são recrutados nessa mesma sociedade que tolera essas imoralidades.

Não nego que na sociedade há quem devolve dinheiro achado na rua à polícia; dólares encontrados em sanitário de aeroporto ao dono; esferográfica Bic, pelo SEDEX, ao proprietário, de outra cidade.  Seu Chico, Rejaniel e Ioiô são uma minoria de Quixotes, que resistem contra os moinhos da imoralidade, mas esse conjunto, à esquerda dos cinco, não conta. Quando o fato de sua honestidade é divulgado na mídia, ocorre, na sociedade, o abalo do espanto. Ninguém jamais deu atenção ao incógnito maranhense que vive na rua, até ser protagonista de fato inusitado: devolver o que lhe não pertence à polícia! Coisa rara, portanto incomum, portanto manchete de telejornais por semanas… Eu tive a infelicidade de esquecer, no data center de um hotel 5 estrelas, no Rio, meu pen drive, e até agora não mo devolveram… São esses, que não devolvem o bem alheio, que mais clamam pela cassação de políticos desonestos!

A ética tradicional sempre distinguiu os deveres para com os demais dos deveres para consigo próprio. No debate sobre o problema da moral em política, vêm à tona exclusivamente os deveres para com os outros (Norberto Bobio, in Ética e Política). Pois bem, é o notável milanês quem cita Benedetto Croce, num remate esclarecedor: “Outra manifestação da vulgar inteligência acerca das coisas da política é a petulante exigência que se faz de honestidade na vida política”. Não se pode exigir honestidade do político, se a não exigiu, antes, do cidadão que a própria sociedade fez político. Afinal, seguindo o passo de Croce, “a honestidade política nada mais é que a capacidade política”…

Este texto, que é uma opinião, pode despertar concordância ou discordância, não importa… O que não deve, espera o autor, é suscitar dúvida. Por isto insisto com Bobio. “A ética política se torna assim a ética do político e, como ética do político, e, portanto, ética especial, pode ter seus justificados motivos para aprovar uma conduta que o vulgo poderia ver como imoral, mas que o filósofo vê simplesmente como o necessário conformar-se do indivíduo-membro à ética do grupo”. O pecado mortal de Demóstenes não foi a quebra do decoro parlamentar, ao mentir na tribuna do Senado, como o acusaram. Seu grande erro foi sua excessiva arrogância, que o incompatibilizou com os de sua grei, tornando-se inconveniente ao convívio parlamentar. Demóstenes era uma raposa imprudente arvorando-se em rei dos bichos. Suas catilinárias parlamentares, divulgadas pela TV Senado, nada expressavam de Maquiavel ou Orwell, eram apenas a destilaria do seu jacobinismo extemporâneo, razão da sua desgraça política…

Como sei que a habilidade em diagnosticar e a competência em tratar determinam o sucesso da cura, ofereço ao prezado leitor, para reflexão, este lugar de Croce, colhido na citação de Bobio: “Ao passo que, quando se trata de encontrar uma forma de cura ou submeter-se a uma operação cirúrgica, ninguém pede a presença de um homem honesto… mas todos pedem, procuram, desejam médicos e cirurgiões, que sejam honestos ou desonestos, mas tenham habilidade comprovada em medicina ou em cirurgia… nas coisas políticas todos pedem, em vez disso, não homens políticos, mas homens honestos, fornidos ao máximo de atitudes de outra natureza”.

Dizem que a cassação de Demóstenes, com cuja pele nada me importo, atendeu ao clamor da sociedade. É sempre assim… Cassa-o! Cassa-o! Se, com essa cassação, o Senado conseguisse converter os 56 ao credo ético dos 19, a consciência política, quando não tivesse logrado moralidade diversa, ao menos teria a compensação de livrar-se da hipocrisia. Foi-se Demóstenes, vem o suplente, para o Brasil político continuar rigorosamente o mesmo: Cinco, dezenove, cinquenta e seis…

Fernando Guedes
Salvador, 13/7/2012
mar 22, 2012 - Poligrafia    5 Comments

Assim cantou o grande cisne…

A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada. (Milton Santos)

Impossível ser geógrafo sem ter gosto pala paisagem. Enxergo tudo, de cima a baixo, para ver e entender. (Aziz Ab’Sáber)

A maior glória da minha vida foi simplesmente insistir no tombamento da Serra do Mar. (Aziz Ab’Sáber)

 

Neste mundo fútil de dubles, onde a cultura e o conhecimento bóiam na superfície da impostura, a Geografia brasileira – não é exagero dizer a mundial – empobreceu-se…  Primeiro, em 2001, perdeu Milton Santos; agora, em 16 de março, para dilatar ao máximo lacuna impreenchível, perdeu Aziz Nacib Ab’Sáber…

Milton Santos, de Brotas de Macaúbas, do sertão diamantino, é, por isto, mais meu… Sempre o admirei; sempre me encantou aquele sorriso franco que trazia na face negra, deixando transparecer sincera serenidade e grande sabedoria… Seu magnífico estudo sobre o Centro da Cidade do Salvador, apresentado à Universidade de Strasbourg, em 1958, como tese de doutoramento, é pérola de Geografia Urbana. Pierre Monbeig, notável geógrafo francês, que aqui lecionou, escreveu: “Bahia de Todos os Santos e de Todos os Poetas, Bahia, a Afro-Brasileira, teve seus historiadores e sociólogos. O professor Milton Santos quis ser o seu geógrafo, procurando compreender as relações complexas entre os homens e a natureza, entre o passado e o presente. Sem abandono do rigor científico, analisa as aparências para melhor compreender as almas”. Eis a geografia do espírito, de que Por uma outra globalização é o libelo contra essa idiotice que arrebanhou incautos mundo afora. Às perseguições, aos preconceitos, sempre respondeu com a grandeza do saber e da cultura, por isto venceu, por isto foi e continua sendo grande!

Aziz Ab’Sáber é de São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo, portanto conterrâneo de Oswaldo Cruz… Esse, cujo nome denuncia a ascendência árabe, atraiu a minha admiração por sua simplicidade límpida, clara, como as águas brancas do seu domínio natal: Paraitinga… Como a Milton, não tive a ventura de conhecê-lo pessoalmente, mas nunca os deixei de encontr, a ambos, na minha própria casa, na minha estante…

Aziz, professor titular do Departamento de Geografia da USP, pesquisou, através de rigorosos trabalhos de campo, praticamente todo o território brasileiro, porém, não se limitando ao campo estritamente técnico, com primorosa incursão nas humanidades, foi completo. Ouso dizer, adotando o conceito aristotélico de perfeição – tudo que possui início, meio e fim –, que foi perfeito. Suas páginas dOs Domínios de Natureza no Brasil são um primor de estilo e de ciência. O capítulo Caatingas: O Domínio dos Sertões Secos, para além de instruir, comove… É impossível lê-lo sem evocar os Sertões, de Euclídes da Cunha, obra máxima, jóia da literatura pátria. Há, nesse capítulo, sem aquelas dificuldades clássicas, lugares euclidianos. “Há um século, no recesso dos sertões de Canudos, Euclides da Cunha anotou dois termos utilizados pelos “matutos” para denominar “as quadras chuvosas e as secas”: o verde e o magrém. Provavelmente, não existe termo mais significativo do que o magrém para a longa estação seca, quando as árvores perdem folhas, os solos se ressecam e os rios perdem correnteza, enquanto o vento seco vem entranhado de bafos de quentura. O verde designa, com clareza, o rebrotar do mundo orgânico por meio da chegada das água que reativam a participação da luminosidade e da energia solar no domínio dos sertões. Infelizmente a expressão magrém caiu em desuso”. Sim, mestre Aziz, o magrém que hoje estiola a cultura, tirou de uso muitas outras coisas, nesta desgraçada nacionalidade onde se queima criminosamente a caatinga, para prosperar o sujo negócio do carvão. Relembremos, porque também isto está em desuso, Euclides: “As juremas, prediletas dos caboclos – o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhe, grátis, inestimável beberagem, que os revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico – derrama-se em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros – misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do verde e termo do magrém, – quando, em pleno flagelar da secas, lhes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d´água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em moitas; e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados… mas, destacando-se, esparsos pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante”. Ah! Como deslumbra… Sabe o nordestino, por senti-lo, o significado do verde, que Euclides e Aziz souberam traduzir com maestria literária… Caminhar, ao alvorecer, por carreiros orvalhados, aspirando o perfume de humildes flores – douradas giestas e xaras olentes -, escutando o arrulhar da volúvel asa-branca, que sempre retorna ao primeiro ronco de trovão, é experiência inesquecível.

Sua luta em defesa da natureza, que principiou com a mobilização em prol dos remanescentes da Mata Atlântica, e que depois se expandiu, adquirindo, cada vez mais, caráter universal, não tinha o vezo do radicalismo estéril, ao contrário, era suavemente rigorosa, em face da segurança e retidão com que expunha suas idéias e convicções. Sua opinião contaria ao projeto de transposição do São Francisco, como fora açodadamente proposto, foi exposta, em artigos, com categoria e exemplar estilo. De um deles (A quem interessa a transposição do São Francisco?), eis remate: “O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da Chapada do Araripe – com grande gasto de energia! –, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política. No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria”.

O meu juízo sobre Aziz é movido pela admiração à distância, por isto quis ouvir a opinião de quem o conheceu de perto… A geógrafa Regina Coutinho, sua aluna na USP, deu-me este depoimento: “Quanto ao meu mestre Aziz, o que posso lhe contar, é que era grande, a começar pela sua altura imponente, e grande, pelo seu conhecimento e sabedoria. Nas aulas, era de uma clareza ímpar, e de uma simplicidade magistral, traduzida também na pronúncia das palavras, trazendo à tona, a sua origem do interior paulista: ” … e agora, crasse, vamos falar do Pranalto Paulista…”, e por aí seguia, nos enchendo de informação, e de orgulho, por sermos seus alunos. Ele era simplesmente Fantástico. Só convivi com ele um ano letivo, mas sempre cruzava com sua figura enorme e desajeitada pelos corredores do meu Instituto de Geografia, na querida e lembrada USP, e aí tinha a oportunidade de lhe perguntar algumas dúvidas, obtendo sempre a resposta, além de uma aula sobre o assunto. Depois, nos anos 90, o IBGE fazia, em comemoração à Semana do Meio Ambiente, lá no auditório da Petrobrás, uma série de palestras, com convidados escolhidos a dedo, e meu professor foi um dos palestrantes, tendo sido aplaudidíssimo pela platéia. Foi a última vez que o encontrei. Sinto imensamente a sua morte, mas sei que ele está no Olimpo, a ocupar, com certeza, uma cadeira dedicada a um deus brilhante, que veio somar ao conhecimento da humanidade, toda a sua bagagem intelectual. Infelizmente, será difícil alguém ocupar o seu lugar, e engrandecer a nossa já tão combalida Geografia”.

Esse deus brilhante, que lançou mil luzes, virou “fazedor” de bibliotecas, e saía a distribuir livros nas comunidades carentes… Certa vez, na penitenciária feminina do Butantã, aonde foi em visita oferecer livros, comoveu às lágrimas aquelas almas empedernidas, que ao próprio mal se habitua… Livros à mão cheia, porque, como ele mesmo disse, “a solidão é perigosa”!

Entre as funções que exerceu, com competência e eficácia, destaca-se a presidência da SBPC, cuja sede em São Paulo visitou recentemente, pouco ante de sua morte, para oferecer um DVD do conjunto de sua vasta obra. Antes de entregá-lo à secretária, escreveu mais que uma dedicatória… Compôs ali mesmo, em poucas linhas, qual cisne que presente a morte próxima, seu canto derradeiro: “Tenho o grande prazer de enviar para os amigos e colegas da Universidade o presente DVD que contém um conjunto de trabalhos geográficos e de planejamento elaborados entre 1946-2010. Tratando-se de estudos predominantemente geográficos, eu gostaria que tal DVD seja levado ao conhecimento dos especialistas em geografia física e humana da universidade”. Assim cantou o grande cisne…

Fernando Guedes

18/3/2012

mar 8, 2012 - Poesia    6 Comments

Mulher

 
 
Tua voz, teu olhar, teu ar dolente
Toda a delicadeza ideal revela
E de sonhos e lágrimas estrela
O meu ser comovido e penitente.
 
(Madona da Tristeza, Cruz e Sousa)

 

 

Tem um quê aparente de fragilidade…

Grácil e sensual qual maja nua de Goya!

É meu ideal, meu pensar sem maldade,

Da minha fortuna a mais rara jóia…

Ó formas alabastrinas! Dessa boca

Febril risos, afagos e carícias almejo.

Quando a idealizo de desejo louca,

A vida daria pela ventura de um beijo…

Mas foge vaporosa, como anjo em arremesso…

De lá, do etéreo longe do pensamento,

Acena-me indiferente, fingindo desapreço.

Depois, com ar inocente de madona, tímida,

Para o meu cismar volta quando quer…

Entre beijos e carícias entrega-se Mulher.

 

Fernando Guedes

Pela passagem do Dia Internacional da Mulher

8/3/2012

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